Nesta retomada dos palcos presenciais após o duro período da quarentena, a peça não deixa de ser uma homenagem à própria classe teatral. Entretanto, não se trata de uma homenagem de fã, mas, de alguém que enxerga os bastidores de dentro, de uma profissional do ramo. Afinal, Célia Forte acumula 36 anos de experiência teatral com o escritório Morente Forte de assessoria e produção teatral, em parceria com sua sócia Selma Morente. As duas são figuras icônicas e de absoluto respeito no teatro paulistano.
Repleta de metalinguagem e crítica, às vezes sutil e tantas outras explícitas mesmo, ao mundo das artes cênicas, com sua bem alimentada fogueira de vaidades, a montagem se ambienta nos bastidores da construção de uma peça de teatro. As personagens são duas atrizes vaidosas, Sara e Helena (as corretas Carol Rainatto e Maria Pinna), uma diretora sisuda, Vanda (uma eloquente Vera Mancini), e uma carismática camareira à espreita, Otila (Claudia Missura, roubando literalmente a cena), que estão no processo de leitura da peça e em busca de uma terceira atriz.
Neste embate constante entre quatro mulheres, Célia Forte, em conjunto com a direção do velho parceiro Elias Andreato — que opta por focar no texto e no jogo da atriz, além de apostar todas as fichas em Claudia Missura — constrói uma crítica ao comportamento que divide as classes sociais nos bastidores de uma obra teatral, desmistificando e humanizando a figura do artista. Afinal, artista também é gente, para o bem e para o mal.
Chama a atenção no texto a maneira ríspida e até mesmo deselegante que a camareira é tratada pelas colegas “artistas” e o modo resignado que esta releva as pequenas humilhações diárias. É como se as três personagens letradas se sentissem superiores à personagem servil, fazendo questão de explicitar a todo momento o que as diferencia, o que soa controverso, pois geralmente temos a ideia de que artistas “querem mudar o mundo”, ou pelo menos se vendem assim aos olhos do grande público.
Assim, a obra de Célia Forte expõe um comportamento estrutural típico das classes mais abastadas no Brasil, país de forte herança escravocrata — também é impossível deixar de notar a escolha por não se tocar no delicado e urgente tema racial, visto que todas as atrizes escolhidas são brancas, o que faz com que a obra se concentre apenas no conflito de classe, foco da dramaturga neste trabalho.
Contudo, enquanto as artistas se acham mais importantes e talentosas do que são, a camareira Otila, e nisso o excepcional talento de Claudia Missura contribui e muito para o sucesso do espetáculo, acaba por demonstrar aos poucos ser a mais capaz — e humana —dentro daquela sala de ensaio. E isso incomoda as outras mulheres. É preciso dizer que Otila, além de roubar a cena, também rouba o coração e as fartas gargalhadas do público.
O conflito central do espetáculo — o de classe —faz rir, mas, também, leva o público a certa dose de reflexão — por mais que grande parte deste público se identifique mais com as “artistas” do que com simplória camareira e sua vida sofrida, simples e impressionantente feliz na periferia. Enquanto que as dondocas estão mergulhadas em um mar de ressentimentos mal resolvidos do passado.
Um olhar romantizado de uma burguesia para a vida periférica se faz presente, mas, é preciso ter em mente que trata-se de uma comédia, e o espetáculo busca cumprir sua função de divertir e entreter o público. De todo modo, a dramaturga demonstra coragem em seu ato artístico de revelar comportamentos que se escondem nos bastidores com sua ironia fina. E isso a torna merecedora de nosso respeito e aplauso. Afinal, artista ou camareira, é tudo gente.
Benditas Mulheres, de Célia Forte, direção Elias Andreato
Avaliação: Muito Bom ✪✪✪✪
Crítica por Miguel Arcanjo Prado
Fotos Annelize Tozetto
Fonte: Blog do Arcanjo
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